segunda-feira, 11 de junho de 2012

Eu falo, Tu falas, Nós não nos Ouvimos!

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular…… A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.


Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.
 Rubem Alves



A faculdade que mais tive de treinar e que mais trabalho me deu e dá a desenvolver é saber ouvir. É preciso silêncio, silêncio interno para poder ouvir.

Nada contribuiu mais para o meu crescimento enquanto pessoa do que ter a consciência que não suportava os silêncios… não me suportava. O ruído anestesia-nos, distrai-nos do contacto com os nossos diálogos internos, do confronto connosco. É fácil termos sempre uma opinião, uma resposta pronta para solucionar milagrosamente os problemas dos outros. Mas será que realmente os ouvimos? Será que damos espaço ao outro para ser ouvido? Ou será que sempre que alguém fala connosco, nos embrenhamos imediatamente em nós mesmos procurando soluções… soluções que seriam boas para nós se tivéssemos coragem de as pôr em prática. Afinal, tantas e tantas vezes que os problemas que os outros nos contam não são mais dos que os nossos… contados por outra pessoa.
Neste texto belíssimo de Rubem Alves está bem retratado o que muitas vezes, demasiadas vezes diria eu, se passa nos diálogos. Alguém fala, e nós, em vez de ouvirmos e sentirmos o outro de acordo com o que o outro é, recriamo-lo e à solução para o seu problema, para a sua vida, segundo o nosso “modelo” do mundo. Opinar, ter a solução, convencermo-nos de que sabemos quem o outro é e o que precisa pode ser também uma forma de nos validarmos, uma forma de pedirmos ao outro que veja como somos especiais, como sabemos tanto…. Como existimos.

No entanto, mais do que a arrogância e vaidade que Rubem Alves menciona no texto, acredito que a nossa surdez tem profundamente a ver com a sensação de invisibilidade que temos e com o medo profundo de nos confrontarmos com o que não foi ainda preenchido e que está dolorosamente vazio … Todos nos sentiríamos especiais, se ao menos ouvíssemos o silêncio. E ninguém nos ensina a ouvir o silêncio.

O som maravilhoso do silêncio não existe, nem pode existir enquanto nele apenas se manifestar o nosso maior inimigo, nós próprios. No silêncio manifesta-se o som estridente dos nossos diálogos internos. E como podem ser terríveis os nossos diálogos. Tomar consciência do que dizemos a nós próprios é um passo importantíssimo para sabermos quais realmente são as nossas necessidades, o que nos falta, o que pensamos sobre nós. E quando reconhecemos o que nos faz falta, o que sempre nos faltou, o que pensamos que somos, estamos prontos para transformar, para nos transformarmos. E aí, a alquimia começa.

Ouvirmo-nos é o primeiro passo para que sejamos nós a dirigir a nossa mente e não a nossa mente a dirigir-nos. Ouvirmo-nos e validarmo-nos é o primeiro passo para que possamos verdadeiramente ouvir os outros… e escutar o som maravilhoso do silêncio.

Exercício:

Pára por uns momentos e dá-te conta do teu diálogo interno. Ouve-te como se estivesses de fora a ouvir pessoas a conversar.
Pega numa folha e escreve tudo o que que vier à tua mente, sem preconceito. Lê o que escreveste e depois, se quiseres, destrói o papel.

Deixo aqui o texto completo de Rubem Alves.

Escutatória


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”.
Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”. Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.
Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos…

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios.

Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.

Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.
Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”.

Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou”.
Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou”. E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa.

No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.


Vera Braz Mendes


7 comentários:

  1. Estar e sentir com a não mente...Osho falou muito bem sobre tudo isso, assim como outrso mestres por aí...e só quando realmente experimentamos é que podemos de fato assinar em baixo...
    Apreender o que escutamos e compreender...
    Excelente mais uma vez..ficaria por horas conversando com você Vera!!!
    Beijos....irei partilhar assim que acabar a festa do António..hoje o dia é dele!!!
    Astrid Annabelle

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  2. Muito bom Vera.
    Excelente exercício.
    A escuta proporciona-nos momentos de enorme riqueza.
    Um abraço

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